Escrevo sobre tudo. Sempre escrevi. É a forma que tenho para pensar, reflectir e debruçar-me sobre um assunto que me apaixona ou me incomoda. E é pelo processo da escrita que me tento perceber e definir. Não me questiono se devo escrever, questiono-me se o devo publicar. Pergunto-me sempre sobre a intenção da partilha. O que me leva a partilhar e onde quero chegar com essa divulgação. É sempre a intenção que me guia e que, no fundo, define o caminho do texto.
Como sempre, antes de tornar este texto público, questionei-me se o devia fazer. É que desta vez a estória não é sobre mim, embora eu estivesse lá. Embora tivesse o privilégio de poder assistir e participar num dos momentos mais bonitos que já vi. Que já senti. Não sendo a minha estória, considero ser sempre muito sensível publicar sobre a vida do outro. E mesmo depois de permitida a partilha pelas partes a quem diz respeito, questionei-me sobre a intenção. A intenção, essa, é clara: partilhar uma estória de amor. Porque a culpa é sempre dele. Do amor.
Categorias e subcategorias
Cresci com a aprendizagem que nos organizamos socialmente pelas crenças. A muitas damos o nome de religião. A religião A, B, C, D… arriscaria dizer que um abecedário inteiro não chega para as opções que temos. Senti-me, e dou por mim ainda hoje a questionar-me, confusa perante tantas escolhas, tantas definições. Sempre senti que sociedade perde demasiado tempo nas definições de tudo. Tudo tem de estar organizado por categorias e subcategorias. É tão cansativo rotular tudo e mais alguma coisa. Os rótulos são tão cheios de nada. De sentido. Ocos no valor. Basta assumir isto: é o que é, o que quer ser, no que quer acreditar. Está bom assim. Ora, reformulo. A mim chega-me. Mas entendo que eu seja apenas tonta e preguiçosa.
No entanto, há mais pessoas a pensar assim. A Rita, uma das minhas Ritas, cruzou-se na minha vida. Cruzou, ganhou espaço, construiu a sua comunidade dentro de mim e cá está, para ficar e dar-me o prazer de a acompanhar neste percurso. Com ela trouxe outras pessoas, outras que me acrescentam. E outros valores. Valores extraordinários.
No mês passado recebi uma mensagem da Rita. Um plano para uma cerimónia de “bênção” ao mais recente membro da família, a sua filha de seis perfeitos meses. Embora, tanto eu como a Rita tenhamos sido educadas em seio familiar católico, do que conheço da minha amiga, achei que a igreja não estaria incluída, mas, como é que ela faria um baptizado (dentro do meu conceito) sem religião?
Pés na terra
As instruções eram simples. Roupas ligadas à natureza, flores, pés descalços e definir um desejo para a nossa miúda. Durante algumas semanas não pensei no assunto. Até que dois dias antes, numa tentativa de escrita de um desejo (ou bênção) para a bebé, me questionei sobre a viabilidade da cerimónia. O que é que aquele momento – que eu não sabia como seria – significaria? Durante algum tempo apresentei resistências. E devo dizer que não me reconheci perante tantas ideias “preconcebidas”, sobre as tais categorias e subcategorias que a sociedade insiste em ter. A mensagem da Rita representava para mim alguma coisa muito “fora da caixa” e estava claramente a deixar-me desconfortável. Foi uma surpresa, bem negativa, para mim. Senti-me envergonhada por rejeitar algo que desconhecia. Muito envergonhada. E nesse dia, também o mundo me parecia não querer colaborar. O trânsito, os autocarros cheios, demasiado cheios, a distância que naquele dia me parecia ter dobrado. O mundo não estava a colaborar…ou era apenas eu a resistir. No entanto, o meu amor por aquelas pessoas ditava-me o caminho. Não podia faltar.
Ao chegar verifiquei imediatamente o chão desenhado por pétalas. Era um círculo e, embora ninguém ali estivesse em posição, os lugares pareceram-me já bem marcados. De forma geral, os convidados cumpriam os requisitos. Pés descalços, roupas claras, brancos, castanhos muito claros. E assim a cerimónia começou.
Foi pela boca do pai que surgiram as indicações, o momento começaria por um agradecimento dos pais, passando para os padrinhos e depois, individualmente cada convidado entregaria o seu desejo. Estava tudo preparado, até que a Rita começou a falar. E, deixem-me já dizer, ninguém estava preparado para isso.

Somos feitos de amor
Não basta ter a palavra certa, saber escrever, saber dizer. Não basta conhecer, conhecer bem uma língua. Não basta saber fazer. É preciso amar muito. Depositar todo o nosso amor. Só assim se consegue atingir o coração das pessoas. Só assim se consegue mudar mentalidades, ser exemplo e, por consequência, mudar o mundo.
Eu não me lembro das palavras que a Rita usou especificamente, lembro-me apenas do amor que lhe senti no agradecimento, não a um Deus, não a vários Deuses, mas sim ao mundo e a tudo o que ser mundo implica. Ela estava ali, vulnerável e profundamente grata por ser mãe daquela miúda que nos encanta a todos, grata pelo pai, pelos padrinhos, pelos amigos, pela relva que pisávamos. Grata por todo o percurso que fez até chegar a este dia. Todas as tentativas furadas, todos os erros, todas as alegrias, todas as decisões. Estava grata por todos aqueles que tem na vida, mesmo os que já foram. Para algum lugar ou para lugar nenhum. E nesse momento todos nós, tão atentos, nos sentimos envolvidos por aquele agradecimento. Fomos relembrados do nosso caminho, das nossas pessoas, das que foram, das que estão, sentimo-nos tão gratos, tão profundamente gratos, por nos sabermos unidos pelo mais forte sentimento de todos: o amor. Amor à bebé, aos pais, à pessoa que estava ao nosso lado, à nossa família, mesmo longe, tão longe, aos nossos amigos, à natureza.
A beleza do momento foi profunda. Por não existirem rótulos, não existirem categorias, diferenças. Estávamos todos unidos. Fomos, verdadeiramente um só, aceitando tudo o que nos separa, gratos por tudo o que nos une e com um único objectivo, desejar o melhor a alguém que queremos que seja feliz. Profundamente feliz.
Devo dizer que não foi fácil recuperar do momento. Sinto-me a repetir o relato a todos os que conheço. É assim que se espalha amor, certo? Sinto-me tão certa que não são precisos rótulos, que temos tanto a aprender no caminho que nos quer unidos e não separados. Tanto para fazer num mundo que nos separa mais do que nos une. Se a Rita pudesse saber que me mudou a vida naquele dia, que me disse, em silêncio, que é por aqui, pelo amor. Que reforçou a certeza de que quando nos unimos por amor e nos despimos de preconceitos somos tão felizes. Porque no fim, todos sabemos, o bem, a união, o carinho, a aceitação, sempre vencerão.
Sou irmã dessa Rita “fora da caixa” …sou o oposto…eu sou a filha “dentro da caixa”…sempre desempenhei com acutilância o papel de irmã mais velha e, fruto das circunstâncias da vida, mais ultimamente, de “mãe” e, acredita, que foi um braço de ferro constante com o furação “Rita” !
Ao ler este texto repensei toda uma vida de ideias, de convenções, de conselhos e de críticas que no final se resumem a quê? A uma mão cheia de nada…que se perde pelo caminho! Não sou eu que estou certa…!
Pelo invés, este texto deixa-nos a pensar e afinal, tudo pode ser tão simples…
Muito obrigada por esta linda homenagem à minha RI!
Joana
Fruto das idealizações e convenções das nossas conhecidas religiões horizontais fomos incutidos a personificar Deus. Mas no fundo é este amor que o texto fala e que a Rita proclama que na verdade é a manifestação de Deus, uma consciência amorosa. Sendo assim ao invocar um ritual do Amor estamos a chamar pelo verdadeiro Deus.
Não podia concordar mais, Ricardo!
Beijinhos, tudo de bom