Há modas que nunca vou perceber. Outras nas quais mergulhei de cabeça por (me) fazerem tanto sentido. Há modas que queremos esquecer. Outras que antevemos. Há modas disto e daquilo. O mundo está cheio delas. Movemo-nos consoante o que nos ditam e vamos vivendo assim. Mas há modas, que embora sejam um exagero para uns, “salvaram” a vida a outros. Bem, tiremos as aspas, é mesmo isso, salvaram a vida. No meu caso foi a moda das dietas sem glúten que trouxe à minha vida (e à do meu médico) a luz e a solução ao problema que durante 29 anos me atormentou.
Embora este tipo de texto seja um bocadinho diferente dos textos habituais do FAR, é um assunto que está directamente relacionado com as minhas viagens, com as minhas aventuras gastronómicas, com o meu estilo e filosofia de vida e que desperta curiosidade, muitas vezes por desconhecimento, naqueles que convivem comigo.
Da escuridão à luz
Há uns anos surgiu a moda do “gluten free”. O mundo despertou para os resultados que uma dieta sem glúten – em termos de perda de peso – trazia. Várias amigas tornaram-se adeptas desta dieta, evitando o consumo de farinhas e cereais. Mas comecemos por aí, pela definição. Ignorando a complexa composição do trigo, glúten é o conjunto de proteínas insolúveis (aka gluenina e gliadina) que se encontram em cereais como o trigo, centeio e cevada (sim, a cerveja está incluída). É o glúten que dá aquela consistência elástica e fofinha ao pão, às massas, aos bolos… Se tentarem fazer pão sem glúten em casa….bem, boa sorte. As minhas tentativas matariam alguém se lhes fossem atiradas à cabeça, tal e qual pedras….pedregulhos!
Sabendo a sua composição é-nos fácil perceber que o glúten está realmente em quase tudo, por relação directa ao trigo.
Tal como esclarece a Associação Portuguesa de Celíacos (APC) a intolerância ao glúten não surgiu agora, como muitos defendem. É um problema de milhares de anos que começou por ser chamado, no século II, pelo grego Aretaeus da Capadócia por “Koiliakos” (aqueles que sofrem do intestino). Esta doença surgiu quando os povos, há cerca de 10 mil anos, depois de “verificarem que era possível semear a terra e obter colheitas de cereais como o trigo”, começarem a consumir de forma contínua este tipo de cereais. Mais tarde, em 1888, o médico Samuel Gee, detectando a mesma doença em crianças e adultos, definiu-a como “afecção celíaca”. A história continua.
Durante a 2.ª Guerra Mundial, com o racionamento de alimentos, o fornecimento de pão à população foi drasticamente reduzido, trazendo uma melhoria clara à saúde das pessoas, principalmente crianças, que sofriam de “afecção celíaca”. Esta relação entre a doença do intestino e o trigo foi confirmada, anos mais tarde, por Charlotte Anderson, que na desconstrução dos cereais chegou ao GLUTEN. Em 1969, a Sociedade Europeia de Gastroenterologia e Nutrição Pediátrica definiu os critérios, diagnóstico e tratamento para a doença celíaca, que é diferente de intolerância. Na realidade, ditam os números que a percentagem de doentes celíacos em Portugal é muito reduzida, residindo entre os 1 a 3%, no entanto, afirma a APC vivem-se tempos de “subdiagnóstico”, isto é, há possivelmente muito celíaco que não sabe que o é.
Em resumo, sempre que ouvirem o argumento “o pão sempre existiu e nunca ninguém se queixou do glúten”, aqui têm o contexto histórico que vos permite refutar.
Na primeira pessoa
Agora que já vos dei uma seca de História, partilho convosco a minha. (Prometo não entrar em pormenores sórdidos). Durante 29 anos, fui diagnosticada, por vários médicos, embora os nomes fossem diferentes, com um género de “intestino preguiçoso”. As soluções pareciam uma repetição. “Beba muita água”, “tome este laxante”, “beba chá folhas de sene”, “tenha uma alimentação rica em verduras”, “coma muita fruta”. Os resultados eram sempre os mesmos: nenhuns. Crises de prisão de ventre, acompanhadas por cólicas esporádicas que me faziam transpirar, gritar de dor e um sem número de sintomas. Acreditem quando vos digo, eu até podia ser magra que a minha barriga seria sempre um pipinho de quatro meses de gravidez.
Desisti dos médicos e aceitei a minha condição de vida. Algumas crises, algumas idas ao hospital, alguns laxantes. Entre os 26 e os 28 anos as crises de cólicas tornaram-se mais intensas. Numa delas, fui levada por amigos para o hospital de Coimbra depois de me terem encontrado prestes a perder os sentidos na casa de banho. O diagnóstico: “possivelmente um quisto nos ovários”. Do hospital fui para a maternidade Bissaya Barreto que nada se descobriu. “Podem ser gases, menina”, foi com este rótulo que saí do hospital. Os episódios repetiram-se.
Em Macau, possivelmente com a mudança alimentar, as crises tornaram-se IN-SU-POR-TÁ-VEIS. Eram lágrimas de dor, barrigas de 9 meses, ataques de pânico, capacidade de concentração muito reduzida, cólicas que me impediam de caminhar. Com repetições intercaladas de três a quatro dias.
As duas amigas com quem partilhava casa começaram a estudar “o meu caso”. Estivemos atentas à minha alimentação, mas não encontrámos nada que o justificasse. Uma delas, consciente que poderia ser uma parvoíce porque afinal era apenas “uma moda”, lançou a ideia: e se for o glúten?
Diagnóstico e muitos euros depois
Embora descartasse essa possibilidade num primeiro momento, afinal de contas, eu sou portuguesa, como pão todos os dias. E adoro. A ideia ficou. Fui ao centro de saúde mais perto de casa, expliquei e deparei-me com uma médica que nunca tinha ouvido falar em “glúten”. “Gluten? What is that?”. Não podia sentir-me mais frustrada. Ainda assim, fiz alguns exames às alergias que ditaram que não tinha qualquer alergia à farinha, mas sim ao pêlo de gato….
Não contente com o resultado, por razões óbvias, pesquisei e procurei pessoas, fossem doentes ou profissionais da área da saúde que me pudessem esclarecer. E é esta a parte que reforço. O estudo tem de ser intenso e constante. A informação disponível sobre intolerâncias, doença celíaca, alimentos portadores de glúten, embora cada vez em maior número, continua a ser escassa e algumas vezes contraditória. Foi-me dito que o paciente deve estudar-se, observar a sua relação com o glúten. E isso é essencial para que consigamos descobrir o nosso caminho, que se espera ser o melhor.
Durante a pesquisa e auscultação de opiniões quis muitas vezes dizer: não, não é isto que tenho. Há pessoas com histórias dramáticas, e depois há pessoas só dramáticas. Como tudo na vida, temos de saber selecionar quem queremos ouvir e quem queremos ser.
Numa das consultas, a médica em causa, sendo profissional, explicou-me que não estava preparada para me acompanhar porque pouco sabia sobre a doença celíaca, mas que sabia que o diagnóstico implicaria uma biópsia.
Foi em conversa com um amigo, que por sinal é médico, que entendi que a biópsia pode não ser necessária e o primeiro passo para o diagnóstico passa pela análise a coisas esquisitas com nomes esquisitos que vos deixo aqui:
– Anti-transglutaminase IgA e/ou IgG
– Anti-gliadina IgA e/ou IgG
– Anti-endomísio IgA
Sim, eu disse que eram nomes estranhos. Não faço ideia o que são. Mas sei que para fazer a análise a estes meninos o paciente tem de ingerir glúten durante algum tempo e, a ser positivo, voilá. O carimbo de celíaco. Outras vezes, como pude ter hipótese de saber, estes exames podem não ser conclusivos o que implicará a realização da biopsia. Uma vez mais, varia de pessoa para pessoa. Eu não fiz a biopsia, mas posso dizer que as análises em Portugal não são comparticipadas, (em Macau nem se fazem, só em HK) e implicam largos euros. LARGOS. Fazer este tipo de exames não está ao alcance de qualquer carteira. E isso deveria ser motivo de vergonha nacional. Às pessoas de Macau: se em Portugal é caro, em Macau (enviam para o laboratório em HK) é um assalto de arma apontada à cabeça.
Perseverança e muito foco
O texto vai longo e não me quero tornar repetitiva. Mas chegamos a uma etapa essencial. O consumo de glúten pelos intolerantes ou celíacos tem consequências nefastas ao nosso corpo. Infecções no intestino, desorganização mental, ansiedade, dores nas articulações, cansaço extremo, erupções cutâneas e doenças autoimunes. A doença celíaca não tem cura. (Mas nunca perder a esperança, né?!)
Há três anos a minha vida mudou completamente. Diria até drasticamente. Uma amiga minha e uma moda para perder peso salvaram a minha vida. Mas para trás estão 30 anos de veneno para o corpo e de desconhecimento. E isso tem as suas consequências. Talvez agora esteja em posição de dizer que o mais difícil é manter o foco. Principalmente para aqueles que como eu, adoram comida, mas detestam cozinhar. Eu não sei cozinhar, não gosto, irrito-me, sujo tudo e nada fica bom. Mas é uma aprendizagem e consciencialização que vivendo no sítio em que estou, que pouco ou nada oferece aos celíacos ou intolerantes, sou eu que tenho “de me fazer à estrada”.
Sou eu que tenho de aprender as receitas sem glúten, sou eu que tenho que garantir que nada é contaminado, sou eu que tenho de resistir às trincas nos bolos, às garfadas na carbonara maravilhosa deste ou daquele restaurante. No caso dos celíacos, a contaminação é um problema, por isso, as opções de almoçar ou jantar fora são quase inexistentes.
Em três anos tive muitas recaídas. “Só um bocadinho não deve fazer mal”, mas fez. E continuará a fazer. Comparado com o meu passado, estou muito melhor, mas o caminho para atingir a qualidade de vida que quero para mim está longe, muito longe.
E não faz mal se na visita ao Osteria Francescana não posso comer a crispy lasagna do Massimo Bottura, quando, em contrapartida, pude abraçá-lo. Não faz mal quando o Pedro está deliciado e com os olhos a brilhar com uma francesinha cheia de picante, quando eu tenho o prazer de poder assistir ao momento. Não faz mal quando os meus amigos estão todos juntos num restaurante e eu não posso comer o que eles estão a comer, porque o que interessa é eu estar ali, com eles.
O mundo está a preparar-se para os celíacos, para os vegan, para os intolerantes à lactose, porque há espaço para todos. Há opções para todos e isso é a única coisa que interessa. Para já, deste lado do mundo, vou podendo aos poucos, mas chegará o dia, em que as prateleiras de um supermercado estarão cheias de opções para nós, os “anti-qualquer-coisa”.
Até lá, só nos resta oferecer alguma tolerância num mundo de intolerâncias.
APC: https://www.celiacos.org.pt/
Photo: Taylor Kiser
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