Às vezes tenho medo de perder a memória. De me esquecer dos cheiros, do som, da emoção que cada dia já vivido me trouxe. Que cada acordar me brindou. Tenho medo de esquecer o cheiro de quem amo. O cheiro daquilo que me faz vibrar. Do que me traz sabor à vida. Tenho medo de ficar vazia. Vazia daquilo que acredito que somos, a memória no outro. Tudo o que o lhe fizemos sentir. Tudo o que lhe oferecemos. De nós para eles. De mim para ti. De coração para coração.
Escrevo para não me esquecer. Escrevo para guardar. Para recordar. Para lembrar a memória de que ela não me pode falhar, para lhe dizer o que é que ela tem de registar e guardar. Ordeno, fingindo que me esqueço que ela, tão ela, tem vida própria. Guarda em si o poder de definir aquilo que sou. É também ela que me faz muitas vezes regressar ao passado, ao que fui, onde estive, com quem me cruzei, o que aprendi e, principalmente, de onde vim. É nessa viagem às origens que me reencontro, e tantas vezes me procuro. Quase como terapia. É lá que mergulho na humildade de me saber pequena mas também capaz. É também lá, nesta mistura de saudade e emoção, que me lembro de sonhos antigos, da capacidade de sonhar e, é nessa mesma viagem, que trago uma mala cheia de nova força, de novas certezas e de novos sonhos.

A torradeira mágica – acabei de lhe dar o nome – é uma história que gosto de recordar. A cada visita algo muda, não sei se por traição da memória, se por vontade do criativo. Mas é qualquer coisa como isto:
Desde pequena, estes olhos grandes pouco se interessavam por televisão. Vamos excluir da equação os desenhos animados que ainda hoje me enchem as medidas. Passei pouco tempo a ver televisão – ainda hoje mantemos uma relação cordial mas muito escassa – e, naturalmente, no auge das novelas brasileiras em Portugal, pouco acompanhei a corrente que parecia envolver todas as minhas ligações. Sou péssima com nomes, nunca os decorei, portanto não vos consigo dizer um nome de novela, um nome de personagem. Mas de olhos fechados sei-vos descrever um grande número de cenas de mesas de pequenos-almoços. Eram as minhas passagens favoritas. Os copos de sumos de laranja distribuídos pela família, o bolo, que apostaria ser de laranja ou, mais arriscado, de iogurte, acabadinho de fazer. O pão perfeitamente cortado em fatias gordas, os doces – uma imensidão de opções – e o bloco geometricamente perfeito de manteiga junto ao patriarca. Cenas profundamente estereotipadas que tinham um efeito profundamente feliz naqueles olhos que pareciam ocupar grande parte da minha cara.
Lembro-me de simular aqueles pequenos-almoços que o outro lado do mundo me ditava, entre bonecas e ursos de peluche. Fingia ser o que não era. O que não conseguia ser. Na minha família o pequeno-almoço sempre foi um momento importante. Mas poucas vezes foi feito em casa e em família, embora se atribuísse ao momento da refeição uma importante mensagem de reencontro e partilha familiar. Aquela refeição sempre foi negligenciada, no entanto, para mim, era a mais importante.
Nos tombos e tropeções da vida, vivi momentos de privação. Privação de encontro familiar, calor de abraços, conforto de beijos na testa. Privação de estabilidade económica e familiar. Privação dos momentos que aquelas novelas me incutiram. De pequenos-almoços. De comida. De sumos frescos. Acabados de fazer. De trincas a meias fatias e de fé. No mundo, na vida e em mim.
Um dia, no auge de uma adolescência menos cor-de-rosa, prometi, de dentes cerrados e punhos bem fortes, que na minha mesa seriam servidos os melhores pequenos-almoços. Nunca seriam esquecidos os sumos, as trincas em fatias inteiras, a partilha e o cheiro a café e pão torrado seria o despertar de toda a casa. Depositei, naquele dia, a fé da salvação, do conforto e da esperança nos pequenos-almoços.
Os anos passaram, outras lutas e mais vitórias chegaram. Dias de menos aperto, de inspirações mais leves e profundas. E quando pela primeira vez, recebi em mãos um cheque do meu primeiro ordenado como jornalista, do primeiro ordenado que não estava milimetricamente contado para uma lista infindável de pagamentos, pousei um pé na rua e segui por um caminho que há muito tinha idealizado, até à loja de electrodomésticos mais próxima. Entrei, pedi orientações, escolhi, carreguei até à caixa, e assim comprei a minha primeira torradeira.
Ao chegar a casa coloquei orgulhosamente, na minúscula banca de cozinha, a minha torradeira. Confesso que a utilidade prática do electrodoméstico em causa foi minúscula, uma vez que durante anos não comi pão. No entanto, ela cumpriu a sua função de forma sublime e perfeita. Todos os dias, no seu jeito silencioso e quieto, aquela torradeira convidava a minha memória a recordar-me que não há sonho que não se conquiste, promessa que não se cumpra, batalha que não se vença, quando o que nos move é o amor e a força do acreditar.
Filipa,
Como me identifico com esta narrativa!
Um beijinho grande.
Continua a brindar-nos com as tuas “histórias”
Cristina,
Obrigada por estar desse lado!
Um beijinho grande
Que texto tão bonito <3
Obrigada 🙂
Que lindo Fiii! Adoro! Mal posso esperar por uma torrada, um café e uma conversa de amigas!
🙂 Combinado! Que venha esse dia! Com pão sem gluten! 🙂
Adorei Filipa! Que viagem às minhas memórias… Que delícia de texto… eu também invejei tantas vezes aquelas mesas de pequeno-almoço… Beijinho grande
Que comentário bom! 🙂 Que partilha boa. Fica prometido um pequeno-almoço 🙂 Beijo
Lindo ❤️
Obrigada meu amor.
Gostei mesmo. GOSTEI.
Não deixe de escrever, faz-nos bem, um sentimento bem egoísta! Mas também lhe faz bem a SI.
Obrigada, de coração! Faz-me muito bem, confesso. Puro egoísmo 🙂 Beijinho grande, espero que tenha tido um dia muito feliz!
Que bem escreves, “cabrona”! 😛😛😛😛