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A torradeira mágica

amor· destaque

19 Mai

Às vezes tenho medo de perder a memória. De me esquecer dos cheiros, do som, da emoção que cada dia já vivido me trouxe. Que cada acordar me brindou. Tenho medo de esquecer o cheiro de quem amo. O cheiro daquilo que me faz vibrar. Do que me traz sabor à vida. Tenho medo de ficar vazia. Vazia daquilo que acredito que somos, a memória no outro. Tudo o que o lhe fizemos sentir. Tudo o que lhe oferecemos. De nós para eles. De mim para ti. De coração para coração.

Escrevo para não me esquecer. Escrevo para guardar. Para recordar. Para lembrar a memória de que ela não me pode falhar, para lhe dizer o que é que ela tem de registar e guardar. Ordeno, fingindo que me esqueço que ela, tão ela, tem vida própria. Guarda em si o poder de definir aquilo que sou. É também ela que me faz muitas vezes regressar ao passado, ao que fui, onde estive, com quem me cruzei, o que aprendi e, principalmente, de onde vim. É nessa viagem às origens que me reencontro, e tantas vezes me procuro. Quase como terapia. É lá que mergulho na humildade de me saber pequena mas também capaz. É também lá, nesta mistura de saudade e emoção, que me lembro de sonhos antigos, da capacidade de sonhar e, é nessa mesma viagem, que trago uma mala cheia de nova força, de novas certezas e de novos sonhos.

A torradeira mágica – acabei de lhe dar o nome – é uma história que gosto de recordar. A cada visita algo muda, não sei se por traição da memória, se por vontade do criativo. Mas é qualquer coisa como isto:

Desde pequena, estes olhos grandes pouco se interessavam por televisão. Vamos excluir da equação os desenhos animados que ainda hoje me enchem as medidas. Passei pouco tempo a ver televisão – ainda hoje mantemos uma relação cordial mas muito escassa – e, naturalmente, no auge das novelas brasileiras em Portugal, pouco acompanhei a corrente que parecia envolver todas as minhas ligações. Sou péssima com nomes, nunca os decorei, portanto não vos consigo dizer um nome de novela, um nome de personagem. Mas de olhos fechados sei-vos descrever um grande número de cenas de mesas de pequenos-almoços. Eram as minhas passagens favoritas. Os copos de sumos de laranja distribuídos pela família, o bolo, que apostaria ser de laranja ou, mais arriscado, de iogurte, acabadinho de fazer. O pão perfeitamente cortado em fatias gordas, os doces – uma imensidão de opções – e o bloco geometricamente perfeito de manteiga junto ao patriarca. Cenas profundamente estereotipadas que tinham um efeito profundamente feliz naqueles olhos que pareciam ocupar grande parte da minha cara.

Lembro-me de simular aqueles pequenos-almoços que o outro lado do mundo me ditava, entre bonecas e ursos de peluche. Fingia ser o que não era. O que não conseguia ser. Na minha família o pequeno-almoço sempre foi um momento importante. Mas poucas vezes foi feito em casa e em família, embora se atribuísse ao momento da refeição uma importante mensagem de reencontro e partilha familiar. Aquela refeição sempre foi negligenciada, no entanto, para mim, era a mais importante.

Nos tombos e tropeções da vida, vivi momentos de privação. Privação de encontro familiar, calor de abraços, conforto de beijos na testa. Privação de estabilidade económica e familiar. Privação dos momentos que aquelas novelas me incutiram. De pequenos-almoços. De comida. De sumos frescos. Acabados de fazer. De trincas a meias fatias e de fé. No mundo, na vida e em mim.

Um dia, no auge de uma adolescência menos cor-de-rosa, prometi, de dentes cerrados e punhos bem fortes, que na minha mesa seriam servidos os melhores pequenos-almoços. Nunca seriam esquecidos os sumos, as trincas em fatias inteiras, a partilha e o cheiro a café e pão torrado seria o despertar de toda a casa. Depositei, naquele dia, a fé da salvação, do conforto e da esperança nos pequenos-almoços.

Os anos passaram, outras lutas e mais vitórias chegaram. Dias de menos aperto, de inspirações mais leves e profundas. E quando pela primeira vez, recebi em mãos um cheque do meu primeiro ordenado como jornalista, do primeiro ordenado que não estava milimetricamente contado para uma lista infindável de pagamentos, pousei um pé na rua e segui por um caminho que há muito tinha idealizado, até à loja de electrodomésticos mais próxima. Entrei, pedi orientações, escolhi, carreguei até à caixa, e assim comprei a minha primeira torradeira.

Ao chegar a casa coloquei orgulhosamente, na minúscula banca de cozinha, a minha torradeira. Confesso que a utilidade prática do electrodoméstico em causa foi minúscula, uma vez que durante anos não comi pão. No entanto, ela cumpriu a sua função de forma sublime e perfeita. Todos os dias, no seu jeito silencioso e quieto, aquela torradeira convidava a minha memória a recordar-me que não há sonho que não se conquiste, promessa que não se cumpra, batalha que não se vença, quando o que nos move é o amor e a força do acreditar.

13 Comments

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Afonso »

Comments

  1. Cristina Oliveira says

    Maio 19, 2020 at 8:52 pm

    Filipa,

    Como me identifico com esta narrativa!
    Um beijinho grande.
    Continua a brindar-nos com as tuas “histórias”

    Responder
    • filipa says

      Maio 20, 2020 at 11:56 am

      Cristina,
      Obrigada por estar desse lado!
      Um beijinho grande

      Responder
  2. Margarida says

    Maio 19, 2020 at 10:46 pm

    Que texto tão bonito <3

    Responder
    • filipa says

      Maio 20, 2020 at 11:55 am

      Obrigada 🙂

      Responder
  3. Pipas says

    Maio 19, 2020 at 10:58 pm

    Que lindo Fiii! Adoro! Mal posso esperar por uma torrada, um café e uma conversa de amigas!

    Responder
    • filipa says

      Maio 20, 2020 at 11:55 am

      🙂 Combinado! Que venha esse dia! Com pão sem gluten! 🙂

      Responder
  4. Carla Carvalho says

    Maio 19, 2020 at 11:10 pm

    Adorei Filipa! Que viagem às minhas memórias… Que delícia de texto… eu também invejei tantas vezes aquelas mesas de pequeno-almoço… Beijinho grande

    Responder
    • filipa says

      Maio 20, 2020 at 11:54 am

      Que comentário bom! 🙂 Que partilha boa. Fica prometido um pequeno-almoço 🙂 Beijo

      Responder
  5. sara says

    Maio 20, 2020 at 10:06 am

    Lindo ❤️

    Responder
    • filipa says

      Maio 20, 2020 at 11:50 am

      Obrigada meu amor.

      Responder
  6. Paula Seabra says

    Maio 20, 2020 at 12:32 pm

    Gostei mesmo. GOSTEI.
    Não deixe de escrever, faz-nos bem, um sentimento bem egoísta! Mas também lhe faz bem a SI.

    Responder
    • filipa says

      Maio 20, 2020 at 1:01 pm

      Obrigada, de coração! Faz-me muito bem, confesso. Puro egoísmo 🙂 Beijinho grande, espero que tenha tido um dia muito feliz!

      Responder
  7. A tua dorinha says

    Maio 23, 2020 at 9:33 pm

    Que bem escreves, “cabrona”! 😛😛😛😛

    Responder

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Não sei se o azul combina com o vermelho ou se este ano os corsários estão na moda. Não decoro nomes, mas memorizo caras. Embora depois confunda tudo…

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E que não duvides do amor. Acredita na sua força, no poder de nos transformar e de nos curar. Não há outra cura. Não há outro caminho e nada vence tudo aquilo que o amor é. 
É ele que nos faz vibrar, enlouquecer e querer tudo. É ele que nos alimenta a alma, nos promove o crescimento, nos obriga a estar atentos. É ele que nos convida a ser, estar e fazer. É ele que nos inspira, que nos emociona e que nos arrepia. 

É o amor. O amor que se manifesta em vida e que vai para além da morte. O amor que nos impulsiona e nos aprisiona. O amor que nos faz estar atentos, que nos faz cuidar e exagerar. O amor que tantas vezes nos faz questionar. 

No princípio, meio e fim. É sempre o amor. O amor que levamos, que semeamos, que deixamos crescer no outro. No fim é tudo aquilo que somos e quanto fomos. No amor às causas, às coisas e pessoas. No amor que depositamos em tudo o que fazemos, em tudo o que somos. No amor a nós. No amor no outro. No perdão. No acreditar e tanto no aceitar. 

É saber que existe um nome que cheira a casa, um peito que é abrigo, uns braços que são aconchego. Que esse alguém é rampa de lançamento e ponto de chegada. Que é porta aberta, brisa de verão. Um amor com a força de uma tempestade no mar. Que é cuidado e atenção. E tanta emoção. É paz.

Amar não é fácil. Decidir viver um amor em conjunto é tarefa difícil. Faz-nos questionar, provoca-nos dores de crescimento e tantas vezes nos enche de frustração. Mas reinventa-nos, é sublime, é grandioso e enche-nos cada poro de uma matéria mágica que ainda ninguém conseguiu perceber qual é. 

Amar é isto. Ser tudo. Seja na tranquilidade de um sonho feliz ou na turbulência de um avião a despenhar-se. É a tentativa de ser equilibro. É a entrega. É vestir as vestes de trapezistas sabendo que lá em baixo não há rede que nos ampare. 

Amar é o nosso maior acto de fé, e é também saber que quando encontramos esse amor, esse alguém que está tão disposto quanto nós a amar, não há nada que nos vença, nada que nos pare, nada que não consigamos. É saber que de mãos dadas somos e que esse ser é o maior tesouro das nossas vidas.

Feliz dia do amor. ♥️]
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Somos e sempre seremos matéria e energia. Para o nosso bem-estar precisamos de conhecer os nossos limites, as nossas ambições e também o nosso corpo. Foi nessa linha de pensamento que convidei Soraia Pires, fisioterapeuta pélvica, para nos ensinar a comunicar com o nosso interior e a estar atentos a possíveis sinais de alerta. 
É através do conhecimento que conseguimos dar resposta às necessidades do corpo e assim ganhar qualidade de vida. 

Num trabalho que vai muito além do físico, Soraia abre-nos a porta do seu @espacodesaude.pt e convida-nos a ser e estar. É que bem sabemos que uma das mais belas formas de amar é saber tratar de nós. 💕

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