Está escolhida a palavra do ano de 2020. SAUDADE. Na eleição, conduzida pelo grupo Porto Editora, saudade foi a palavra mais votada pelos portugueses para representar o último ano. Não foram as óbvias “Covid-19”, “pandemia”, “confinamento” ou até “zaragatoa”. A escolher, os portugueses preferiram aquilo que mais sentiram. Saudade.
Como devem compreender, graças à tecnologia, uma fatia generosa do meu tempo de confinamento é passado em contacto com o mundo lá fora. Não existem dados que aguentem, nem internet ilimitada que não termine. Hoje, numa dessas longas conversas de partilha, ouvia uma amiga que está “presa” em Macau há um ano.
Se ontem vos mostrei um lado feliz de um grupo de medidas que nos protege a todos, hoje também vos venho dizer aquilo que todos sabemos. Não há vidas perfeitas. Opções correctas. Decisões maravilhosas. Em todo o lado bom existe o mau. Toda e qualquer causa tem um efeito. Bom e mau. Em todas as decisões existem boas e más consequências. A vida é esta balança. Esta tentativa de equilíbrio. Idealmente, de prejudicar o menos possível.
Estar nesta bolha de protecção tem as suas desvantagens. Que agora, com o passar do tempo, com um fim que não se alcança a olho nú, começa a pesar.
Há famílias separadas há meses. Há pais que nunca conheceram os filhos. Muitas vidas estão paradas. Os bolsos começam a esvaziar e as opções a escassear. Uns presos em fronteiras que não se abrem para todos. Outros por impossibilidade logística. Seja por trabalho, seja pelas medidas impostas.
Há pessoas que se sentem esquecidas. Outras tantas que ao peito não carregam nada mais do que saudade. Bem sei que em Portugal é difícil, que não nos podemos tocar, que o abraço nos falta. O toque. O cheiro. Bem sei que olhar ao longe sabe a pouco, quando o que queremos é tanto. E não existe, nem pode existir, competição quando estamos todos a lutar.
Por aqui vive-se lado a lado com a saudade. Ser emigrante é saber aceita-la no nosso dia-a-dia. É saber que ela veio para ficar. Do nosso peito não vai sair.
Ser emigrante em tempos de pandemia é um esforço hercúleo. É obra prima do sacrifício. É doer cada pedaço de amor que sentimos pelo outro. Ser emigrante em tempos de pandemia, com portas fechadas, sonhos suspensos e abraços esquecidos, é aguentar até explodir. É não ver fim. É querer ir, sem poder mexer um pé.
Cumpro 21 dias porque outras forças me obrigaram a ir a Portugal. Mas no intervalo dessas forças, vi o meu pai durante 15 minutos, olhei-o nos olhos e disse-lhe que estava bem. Certifiquei-me que ele também estava bem. Prometi-lhe, em pessoa, voltar, assim que puder.
Vi a minha mãe. Abracei-a por dois dias depois de saber que estávamos as duas negativas. Vi a minha irmã, sem a abraçar, mas pisquei-lhe o olho, sorri-lhe, ofereci-lhe pedaços meus, como quem pede para não me esquecer.
Ouvi quem amo, umas vezes de olhos em lágrimas e outras de sorriso rasgado. Prometi voltar. E sei que voltarei. Estive lá. Vi. E hoje a ouvir a minha amiga desejei que fosse ela, fosse ela a ver aqueles que ama, mesmo que fosse assim, de longe.
Que lhe dessem esse resto de esperança, que lhe entregassem esse acreditar em forma de rostos, de cheiros e de abraços prometidos. Quis que aqueles que aqui estão, que nos parecem tantas vezes esquecidos por quem decide, pudessem sentir aquilo que eu senti, um bocadinho de menos saudade.
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