Continuo a impressionar-me com o ser humano. É uma máquina de surpresas e coisas inesperadas tantas vezes injustificáveis ao olhar dos mortais. Estou cada vez mais certa de que somos capazes de tudo, mesmo o que achamos ser impossível.
Dizia-me um médico, que mais do que isso meu amigo é, que “está cientificamente provado que o impossível não existe”. Um bocadinho influenciada pela admiração que lhe sinto, amei a ideia.
A experiência dos 21 dias continua muito presente no meu pensamento. Muitas vezes de forma involuntária e quase inconsciente. Não procuro pensar sobre o que foi, o que mudou, se é que mudou alguma coisa. Não procuro sequer atribuir-lhe um sentido, nem um valor que a sociedade diz que não deve ter. É o que é, para cada um de nós.
No entanto não posso deixar de notar nesta capacidade que temos de tornar tudo muito “normal” quando passa a ser a nossa realidade. O ser humano é de hábitos e até a montanha mais difícil de escalar, nós, os humanos, desde que lá, a tornamos a nossa habitual e tranquila realidade. Somos elásticos e adaptamo-nos de forma impressionante.
O isolamento tornou-se um hábito e, por isso, a minha realidade. No entanto, só o soube já “cá fora”, quando confrontada com o número de pessoas na rua, o barulho dos autocarros, a falta de tempo para mergulhar na minha própria rotina, suspensa algures no tempo. Uma exigência de todos e de mim mesma naquilo que seria o meu normal.
Desse lado muitos de vocês quiseram saber como foi regressar. “A que é que sabe a liberdade?”, alguém perguntou. A liberdade soube-me a azedo. Foi confusa, faltou-me tempo para respirar e dei por mim a roçar uma espécie de síndrome de Estocolmo com o isolamento. Foi confuso e o meu corpo fazia-o notar.
Acordava sem noções de que horas seriam, o apetite raramente existia e quando surgia tinha horas muito esquisitas para o fazer.
Acordava às 3 da madrugada com fome e uma hora depois, mesmo de estômago cheio, estava esfomeada. Esquecia-me de tomar o pequeno-almoço e nunca me lembrei de jantar. Às 09 da manhã sentia-me cansada como se fossem 22horas e às 22h estava a dormir desde as 19h.
Durante os quatro primeiros dias, embora impedida por razões profissionais, quis dormir em qualquer canto e esquina. A liberdade soube-me a confusão. A não pertencer ao meu grupo de amigos, à minha equipa de trabalho e ao meu mundinho que diariamente me acolhe.
A falta de sol e ar puro ainda me custa, na cor da pele e no ar saudável. Hoje, 8 dias depois continuo a sentir-lhe a falta. Foi na quinta-feira que acordei alinhada ao relógio. A alegria de sentir que era manhã foi uma primeira experiência. Como isso, houve outras coisas que despertaram o meu entusiasmo e observação.
Tenho-me deslumbrado pela conexão evidente entre o mundo, a natureza e os seres humanos. Num mundo caótico e numa pandemia que insiste em nos trocar as voltas e privar de tanta coisa que assumíamos como garantida, num momento histórico e doloroso para todos nós, é mágico sentirmos que de alguma forma o mundo se ajeita, o humano dá conta do recado e seguiremos em frente.
Numa vela de pavio curto e queimado é reconfortante saber que a esperança não se apagará. Assim nos dita a história, os poros de cada traço de pele que carregamos no corpo e a resistência alheia. Agora não tenho dúvidas de que, de alguma forma, com mais ou menos empurrão, tombo e arranhão nós, tu, eu e todos aqueles que amamos, daremos conta do recado, resistiremos e, mais do que qualquer outra coisa, reinventar-nos-emos.
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