O FAR tem andado um bocadinho desaparecido porque estamos em mudanças. Caixotes para um lado, móveis desmontados por outro, sacos e sacos de tralha acumulada nos últimos anos. Sem qualquer razão, mas que na altura fazia todo o sentido guardar.
Sempre me dei muito bem com a ideia de mudar de casa. Na verdade, era prática comum na minha família. Uma mão cheia de anos numa casa e lá estávamos nós a mudar. O processo desde o dia em que a minha mãe nos dizia, quando se referia a uma decisão já tomada entre ela e o meu padrasto, “acho que devíamos mudar de casa”, até à chegada à nova casa era um montão de adrenalina e felicidade no meu pequeno coração. Gosto de mudanças. Gosto da inquietude que antecede uma mudança. Aqueles receios, as certezas, o “mudar de página”, o mergulhar “numa nova fase”. Tenho títulos para tudo, dependendo da intensidade que lhe quero dar.
Foi, talvez por isso, muito estranho quando alguém na minha família decidiu que era altura para comprar uma casa. O conceito de comprar casa existia para as outras famílias. Todas as outras. Mas não a minha. Todos concordaram. Eu, depois de me explicarem, também. Mas não consegui disfarçar a desilusão. Comprar, poderia significar não voltar a mudar. Ficar ali para sempre. E estas asas atrofiadas não me permitem ficar muito tempo no mesmo lugar. Entro em pequenos sufocos mentais e emocionais. É quase patológico.

De cada casa guardo profundas e felizes recordações. Cada uma delas tem as suas próprias características, e gosto, quando posso, de voltar a passar por elas. A imaginar-lhes novas famílias ou a recordar outros tempos. Tempos em que eu era professora das minhas bonecas, ou adolescente que saltava pela janela, ou na casa que me prendeu durante horas no elevador. E os natais? As diferentes decorações, o jardim iluminado, ou as luzes à janela quando não havia jardim.
A cada casa atribuía um cheiro, um sabor, uma música. Tenho-as catalogadas na minha mente.
Depois de ganhar alguma idade, em quase todas elas dediquei-me muito a transformá-la num lar. Nem sempre foi possível. E ao longo do tempo, com gosto mais apurado e necessidades diferentes, fui criando requisitos obrigatórios. Luz natural, janelas, quantas mais melhor e chão de madeira.
Transformar uma casa num lar não é tarefa fácil. Lembro-me de um dia me dizerem: Um lar será sempre uma casa, mas uma casa nem sempre é um lar. Um lar tem como pilares o amor. O carinho de um porto-seguro. A protecção de uma família unida, sejam quantos forem. Dez, quatro ou um. É o nosso lugar. É ali que pertencemos. É ali que baixamos as guardas, abrimos portas à fragilidade, aos receios. É ali que recuperamos. Que recarregamos energias. É ali que escrevemos grande parte da nossa história.
Lembro-me de escrever cartas de despedida às minhas casas. Com o tempo perdi-as quase todas. Mas lembro-me de reler umas poucas e sentir uma espécie de nostalgia envergonhada. Mas recordo-as todas como a mais bela despedida, carregada de gratidão, que lhes podia entregar.

Hoje deixo aquela que, sem hesitação, foi, até ao momento, a casa mais importante na minha história. Recebeu-me adulta, transformou-me como mulher, como ser humano, como ser. Apenas. Ser. Foi tudo aquilo que sonhei que uma casa poderia ser. Porto de abrigo em todos os trambolhões, escola e sala de reflexão, foi confessionário de tanta gente. Gente que amo. Foi salão de festas.
Foi adolescente, casa de estudantes e casa de família. E foi aqui, pela primeira vez, que dei os primeiros passos para a mulher que quero ser. Foi aqui, na varanda, nos quartos, na nossa sala que aprendi sofrendo, aprendi rindo e, aqui, reforcei sempre a minha esperança.
Esta casa é mais importante do que qualquer outra por onde passei. Por ser a minha primeira casa. O meu primeiro lar, sem a proteção do abraço da mãe, do conforto da família que a tantos quilómetros de distância está. Foi ela, esta casa, que me fez sentir que pertencia a um lugar. A uma porta que se abria sempre que eu queria e só quando eu queria.
Foi também aqui que me tornei amor. Por todo aquele amor que entreguei aos que me visitaram. Aos que aqui estiveram. Por todo o amor que recebi. Da Leonor que me ajudou na construção, da Liane que deixou saudades escrito por todas as paredes, móveis e janelas e do Pedro que me agarrou a mão e me transformou para sempre.
E nessa caminhada, com esta casa como cenário, aprendemos a melhor lição de todas. Neste lugar mais seguro do mundo, saímos de corações apertadinhos, mas mais fortes, mais felizes e mais certos que a receita perfeita será sempre: amar.
A casa, o outro, a vida. Hoje, fechamos a porta para abrir outras tantas. E vamos cheios de gratidão. Porque sabemos que em qualquer parte, desde que haja amor, construiremos o nosso lar.

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