A minha emigração “obrigou” os meus amigos a adoptarem novas rotinas em prol da nossa amizade. Ou da sua manutenção. Acontece que o telefonema e o café ao final do dia não podem acontecer por implicar a interrupção do meu sono profundo. É que na melhor das hipóteses são sete horas que nos separam. Como diz a Rita, “Filipa, tu estás sempre no futuro”.
Assim, de forma a evitar telefonemas durante a minha madrugada, algumas das minhas amigas ligam-me ao seu pequeno-almoço ou no caminho de suas casas aos trabalhos. Assim, pela fresca. Meter a conversa em dia. Para elas, começar bem o dia, para mim, terminar em grande o meu dia de trabalho.
Esta semana, numa dessas chamadas, uma amiga noticiava-me “olha que está a chegar a época dos tufões, vê lá se vens para cá”. Ri-me. Na verdade a época de que ela falava já chegou e já se fizeram sentir uns dias bem quentes devido à passagem (longe) de um tufão. Um esteve mais próximo, mas nada mais do que umas chuvadas intensas.

Do T1 ao T10
Até me mudar para Macau nunca tinha assistido à passagem de um tufão. Testemunhara dois terramotos e incontáveis inundações na colorida cidade dos guarda-chuvas, Águeda. Tantas que até o meu livro de História do 8.º ou 9.º ano ilustravam a tragédia com uma fotografia da nossa cidade. Mas um tufão nunca.
Antes de me perguntarem, tufão e furacão são o mesmo fenómeno, o nome muda devido à localização (podem saber mais aqui). Estas depressões tropicais formam-se em águas quentes, desenvolvendo-se para tempestades tropicais e, ao ganhar força, para (neste lado do mundo) tufões. A época de tufões é de Maio a Outubro, mas é entre Julho e Setembro que os sacaninhas gostam de dar o ar de sua graça, tornando o Verão a estação mais bipolar de sempre.
Antes de vos falar sobre a minha experiência, tantas vezes questionada pelos meus amigos e familiares, importa dar-vos algum contexto. Os sinais de tempestade tropical organizam-se numericamente, por: Sinal 1 (T1) – o tufão localiza-se a menos de 800 km de Macau; Sinal 3 (T3) – ventos entre os 41 km/h e os 62 km/h com possíveis rajadas até 110 km/h; Sinal 8 (T8) – o tufão estará logicamente mais próximo de Macau, com ventos entre 63 km/h a 117km/h e rajadas de 180 km/h; Sinal 9 (T9) – com ventos iguais ao sinal anterior, o tufão está cada vez mais próximo de Macau e, finalmente, o Sinal 10 (T10) em que os ventos, já a poucos quilómetros de Macau, ultrapassam os 118 km/h, com rajadas bem superiores a essa velocidade. (Se quiserem saber mais, enquanto decidem quando é que me vêm visitar, espreitem aqui).
Em termos práticos, T1 serve para avisar a população que há um tufão algures a pelo menos 800 km de nós, no T3 algumas escolas fecham e podem sentir-se algumas rajadas de vento, com T8 é suposto ninguém sair de casa, ou de lugar seguro, as pontes são encerradas (excepto o túnel), o serviço de transporte público é suspenso, o serviço de barcos que faz a travessia para Hong Kong e China é também cortado. Basicamente, para além dos jornalistas e autoridades competentes para o efeito, mais ninguém anda na rua e tudo está fechado.
Tranquila com a nortada
O meu primeiro T8 (agora já percebem o que quero dizer!) foi em 2014. Choveu torrencialmente durante toda a noite. O tecto da minha casa parecia querer ceder. O barulho da chuva a cair assustava, mas o sono venceu-me. Ao acordar, a chuva estava claramente mais calma, e as inundações na zona onde vivia já se faziam notar. Convicta das minhas funções arranjei-me e segui para o trabalho. Claro que dei com a cara na porta e ao ligar à minha editora lembro-me de lhe dizer “Mas Joana, já vivi nortadas mais fortes”.
Os anos foram passando, não me lembro de outro T8 com tanta chuva. Tenho na memória, em 2017 um T8 que nos pareceu um T3, arrisco dizer, um T1 mais chateado. Eu, cliente assídua das praias da Barra e da Costa Nova, voltava a reforçar: “Malta, vocês já foram a Aveiro? A nortada é mais forte do que este tufãozinho. Meninos”.
Cheira a esturro
Sempre fui muito interessada em fenómenos da Natureza. Todos eles. E portanto, sempre que há um anúncio de um tufão, lá vou eu pesquisar. A força, a previsão, o significado do nome, comparar observatórios. Lá por casa faziam pouco de mim, mas as minhas costas aguentam bem esse peso.
O Hato vinha cheio de força. Parecia grande. A dúvida pairava entre as nossas quatro paredes, íamos ou não trabalhar no dia seguinte? Às 07horas da manhã do dia 23 de Agosto de 2017, da nossa varanda o céu parecia querer brindar-nos com um bonito dia de sol. Nas nossas apostas de T1, T3 ou T8, já me sentia a perder por ter apostado no mais forte. Comecei a preparar-me para ir trabalhar quando recebo uma mensagem de uma colega a dizer que seria T8. Ainda tive dúvidas.
Éramos quatro naquela casa. Mais do que isso. Quatro pessoas convictas que “só vinha uma chuvada”. A chuva veio, com ela o vento e tive a sensação que o prédio baloiçava. “Isso deve ser da fome”, disse-me a Leonor.

Num piscar de olhos
Na minha cozinha, a preparar o pequeno-almoço para saciar a fome matinal que supostamente me estava a fazer falhar as pernas, ouço aquilo que me pareceu um vidro partir. Olhei pela janela e achei que para além de esfomeada estava a delirar. Voavam janelas, tijolos, pedaços de panos e ouviam-se berros.
Corri para o quarto – por ter a janela maior – e já o Pedro estava junto ao parapeito da janela com o ar mais espantado do mundo. “O que é isto?” Era o Hato. Tinha chegado. Em força. E em segundos. E enquanto não percebiamos o risco de estar junto à janela, assistimos a tijolos a dançar entre os ventos, sem nunca tocar no chão, janelas a serem arrancadas, folhas que voam de dentro das casas, brinquedos, tecidos de cortinas, lençóis, um vizinho desesperado agarrado à janela como se fosse possível ganhar aquele braço de ferro com a fúria do Hato.
Ao olharmos para o nosso lado direito assistimos ao que jamais esquecerei. Gradualmente formava-se um lençol de água com metros de altura. Como se por magia alguém fizesse aquelas águas subir. Um manto que se mostrava impenetrável e preparado para destruir. A adrenalina é das melhores coisas que podemos sentir. Mas faz-nos ser irracionais. E nessa irracionalidade mantivemo-nos ali, os quatro, até o manto atingir com força máxima a nossa janela. Foi nesse momento que sentimos pela primeira vez – ou pelo menos que nos consciencializámos – que aquele bicho não estava nada bem disposto. O vidro da nossa janela quis saltar fora e com a percepção de que algo podia correr muito mal, fugimos do quarto arrastando o que podíamos para evitar estragos maiores. Uma das nossas janelas não teve a vida facilitada e viu-se torcida com a força do Hato. Leram bem, o alumínio torceu.
Importa referir que mais tarde, decidimos “agarrar” a janela atando-a com atacadores das nossas sapatilhas. Sem julgamentos alheios, por favor. Nada se torna racional naquele momento. E se há altura em que nos transformamos em Macgyver, é ali, naquele momento.

Plano de fuga
O vento gritava pelo nosso corredor. O barulho era assustador e a determinada altura acreditámos que as janelas da nossa varanda iam rebentar. Criámos aquilo que podemos chamar de abrigo junto à porta de casa, para que num momento mais sério, pudéssemos sair para as escadas de incêndio. Por esta altura já pouco falávamos uns com os outros e o ambiente estava mais sério. O Hato não estava para brincadeiras.
Pareceram-me horas. Não sei quanto tempo foi. Tenho ideia que foi muito. Definitivamente não eram as minhas pernas. A casa baloiçava e nessa dança mandaram-nos evacuar o edifício. Ora, nós vivemos num 17.º andar, a vizinha estava numa cadeira de rodas e os elevadores seriam desligados. A tarefa não parecia ser fácil. Mas lá conseguimos convencer os seguranças a manter um elevador ligado por mais uns minutos.
Antes de sair de casa a Liane com a caneca de café com leite na mão olhou para mim e perguntou-me: o que é que levamos? E na minha irracionalidade do momento mando para o ar:
– Passaporte?
E com a maior naturalidade ouço em resposta:
– Isso e o meu portátil que gastei uma pipa de massa há pouco tempo. Não o vou deixar!
Ao descer, volto a olhar para a Liane e pergunto, como se ela tivesse todas as respostas do mundo guardadas no bolso: ok, temos de sair do prédio, mas vamos para onde?
As perguntas disparatadas – que agora nos fazem rir, mas na altura nos pareciam ser a coisa mais acertada a perguntar – continuaram. Mas estas são as que guardei na memória.

Tempo de silêncio
Reunidos junto ao átrio do prédio, cada vez chegavam mais pessoas. Janelas que saltaram fora, vidros partidos, muitos relatos idênticos. Algumas pessoas feridas e sem acesso a cuidados médicos. No prédio ao lado pessoas presas nos elevadores, uma mãe em lágrimas pelos cortes que o rebentamento de uma janela provocara na filha. A chuva tinha parado, o vento também. Lá fora as ruas tinham por elas espalhadas motas, vidros, árvores.
– Acabou? – mandei para o ar – Isto já acabou? – A resposta era óbvia. Não. E a pior parte estava para chegar.
Ser-me-á sempre muito difícil descrever o silêncio que se sentiu naquele momento. Estávamos no olho do Hato. O vento não existia, o ar era quente. A imagem era digna de filme de Hollywood. Uma libélula pousou junto ao meu pé. Outra mais à frente. Curiosos – a culpa é da adrenalina – fomos a passos lentos até à estrada e olhámos o céu. Parecia-nos o dia mais calmo que o mundo já tinha assistido. O silêncio era profundo. É inexplicável. Não fosse a premonição de que algo não estava bem, tudo parecia estar bem. Muito bem.

A cauda
A contemplação foi interrompida por um grito do segurança do prédio. Não podíamos estar ali e estava na altura de regressar a casa. Afinal, tudo parecia estar bem com o edifício.
Antes de regressar ouvimos no átrio: preparem-se agora para a cauda.
A cauda chegou e chegou com toda a força. O que estava meio destruído ficou totalmente destruído e o que não estava, passou a estar. A nossa casa parecia querer rebentar tal era a pressão que os ventos faziam. As péssimas notícias enchiam-nos os telemóveis. Amigos feridos, mortes e muita destruição. O ambiente estava cada vez mais pesado e já só desejávamos que tudo terminasse o mais rápido possível.

Num só som
O assobio começou a perder força. As janelas pareciam relaxar. Sentimos que estávamos perto do fim daquele pesadelo. Embora ele estivesse agora por outras terras a assustar outras pessoas. Perdemos a luz e a água e o calor era tanto que nos desfazíamos em suor.
O dia seguinte foi caótico. Ninguém estava preparado para encontrar uma terra desfeita. As deslocações eram caóticas, em certas partes de Macau a água e a luz continuavam por aparecer. E foi nesse turbilhão de emoções, frustrações e condenações que a magia aconteceu. Em cinco anos nunca assisti a uma união em uníssono. Nunca assisti ao poder da união como tive o privilégio de assistir por aqui. Macaenses, portugueses, chineses, australianos, franceses, filipinos, tailandeses, éramos tantos por todos nós. Cada um soube qual era o seu lugar. E seguindo ordens uns limpavam, outros distribuíam, outros cuidavam, mas todos trabalhámos juntos.
E quem não o fez…bem, quem não o fez ficou no esquecimento de um dos dias mais belos a que Macau já assistiu.

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