Em algum momento nas últimas semanas me disseram que a minha vida, assim tal como a conheço, não voltaria a ser igual. Falaram-me em desafios, limitações e outras liberdades.
Em algum momento, neste tão admirado mês dos milagres, entendi que o meu prazo de validade é curto. Ou poderá ser curto. Ou que será sempre mais curto do que aquele que quero que seja.
Em algum momento nas últimas três semanas tive consciência da morte. Da sua proximidade. Da sua possibilidade. Em algum momento o pior cenário foi colocado em cima da mesa como a mais forte possibilidade.
Em algum momento a figura da morte entrou na minha vida como sombra presente, como companhia diária. Em cada gesto, em cada movimento, em todos os meus pensamentos. Ela esteve sempre ali a ver tudo o que eu fazia, dizia e pensava. Umas vezes ria-se e fazia-me sentir ridícula. Tonta. Outras era mais cúmplice, mais companheira. Olhava-me como quem me dizia “Sim, é comigo que vais acabar, é aqui, em mim, o teu fim de linha”.
Sempre fui corajosa. Nunca o soube. Mas agora, neste 2020, tenho a certeza dessa minha característica. E quando tu sabes aquilo que és não há nada que te pare. Bem, talvez a morte te pare, mas nunca o que foste e a memória que és para o outro. Isso nem a morte conseguirá apagar.
Agora sim, sei-me e afirmo-me como corajosa. E nessa coragem decidi preparar-me para o que mais se temia. Planeei tudo. Quão ridículo pode ser planear o fim dos nossos tempos? Há quem chame de “forma de reagir”, racionalidade e outros nomes. Há quem pense que é uma tontice. Há espaço para todos. Para mim, é o que me faz sentido, racionalizar, preparar e avançar. Foi o que me fez sentido para conseguir que as pernas deixassem de tremer, o coração disparar e as mãos de suar.
Estava tudo pensado. Tudo dependia do tempo que me restava, mas sendo optimista como sou, no meu plano, restariam-me entre 6 a 9 meses de vida.
Comprei um bilhete para Portugal e até ao dia da viagem passei tempo com quem quis, quem me faz sentido. Ouvi muito a Paula, ri muito com o Nelson, convidei a vizinha para vários cafés, amei muito a Cook e a Eli. Falei horas ao telefone sobre a vida e planos e esperança. Porque é tudo aquilo em que acredito.
Expliquei o possível diagnóstico a duas pessoas e tínhamos a certeza que não seria nada. Que ia ficar tudo bem. Era tudo uma confusão, uma grande aventura que serviria apenas de inspiração para um texto do FAR. Mais uma história mirabolante para contar, bem ao jeito do Big Fish.
Voei e fui directa ao meu lugar favorito. Agora tenho a certeza. O Alentejo. Acordei cedo, olhei a terra e senti-lhe o cheiro. Comi. Comi muito. Comi pelas mãos de quem sabe cozinhar, da horta para a mesa, com o toque do chef Henrique Castilho e desejei que todos tivessem oportunidade de comer tão bem. De saborear a vida como eu o estava a fazer. Desejei que todos tivessem tempo. Tempo para estar e ouvir os outros. Bebi bom vinho e quis estar em paz com todos aqueles que amo.
Em momento algum me senti triste, simulei vontades ou fiz coisas que não queria fazer. Em mim cabia apenas felicidade e paz. Conduzi muito e lamentei não ter tido a coragem, aí sim, faltou-me, de não me ter mudado para o nosso Alentejo.
Depois de Portugal regressaria a Macau, organizaria, com a ajuda da Cook, uma festa bonita de amor. Ela sabe bem como fazer com que as pessoas se unam, mesmo nas diferenças e não existiria melhor forma de dizer adeus à terra que me ajudou a ser mulher.
Em seguida, pegaria na mochila e viajaria para todos os lugares que quero visitar. O virus perdeu toda a importância, afinal, morrer eu já estava a morrer. Na verdade – spoiler alert – estamos todos a morrer.
Decidi também que quando já não tivesse condições regressaria a casa. À mãe, ao pai e a quem mais quisesse estar. Não me preocuparia, nem por um segundo, com o que os outros pensassem. Nem mãe, nem pai, nem ninguém. Foram eles, foram todos vocês, que me ensinaram a viver em verdade, pela minha verdade, e por tudo aquilo em que acredito. E eu acredito que devemos viver uma vida de amor, amor a nós, nas viagens, na comida, em tudo aquilo que nos faça felizes, em amar o outro, na partilha, no crescimento, no carinho, paciência e atenção. No tempo em estar. No pensamento colectivo. Por todos. Sempre por todos.
Defini também que estava disponível para partilhar espaço nas minhas viagens, não me obrigaria a estar sozinha. Isso nunca me fez sentido. Era um convite aberto a todos aqueles que quisessem estar presentes e ir. A quem quisesse viver por amor à vida e partilhar isso comigo. Já o sei, sempre o soube, a vida sempre fez questão de me mostrar que é na partilha que somos felizes.
Estava muito entusiasmada com o plano que eu própria tinha criado, idealizado ao pormenor. Eu tinha criado tudo aquilo. Mais do que isso, sentia-me muito preparada para viver antes de morrer.
Na noite antes da confirmação do diagnóstico, experienciei a temida insónia. Os olhos teimavam em não fechar. O corpo estava gelado, preso à cama. Senti que o tempo tinha parado, tal como se, por horas, estivesse bem no olho do pior tufão da minha vida. Onde o mundo entra em suspense. Onde nos sentimos presos ao chão mas leves como penas. Prestes a voar. Onde a respiração parece parar. Senti que tudo aquilo era um estágio para o que viria a seguir.
Decidi levantar-me e contra todas as regras dos médicos servi-me de um café. Uma longa caneca de café. Não foi uma chávena, nem deixei um resto de café. Foi uma gorda chávena cheia de café que eu bebi até ao fim num momento só meu. A cada gole cada lágrima também ela gorda a escorrer-me pelas, também elas, bochechas gordas.
Assumi o piloto automático, meti tudo o que precisava em piloto automático e rumei a Lisboa. Achei o trânsito insuportável, mas perfeito para espreitar as pessoas que vão nos carros, que seguem alguma vida que não a minha. Invento-lhes sempre nomes, profissões, paixões e outros tantos amores. Acenei em jeito de bom dia e sorri para outros. As pessoas sempre precisarão do nosso afecto, da delicadeza e educação.

Quando cheguei ao meu quarto conversei durante algum tempo com a enfermeira Helena a quem pedi, insistindo vezes sem conta, para de uma alguma forma ela interceder por mim para que não me sedassem. Entre risos de incrédula ela explicava-me que não era possível. Eu insistia que queria ver, ouvir e entender tudo o que me poderia acontecer. Dei por mim, sentindo-me a batalhar muito contra o meu próprio corpo. Todos os meus músculos estavam tensos. Fui ao mais básico que os humanos conseguem ser, ter a mania que controlam as situações. O mundo. A vida.
Foi então que me recusei a ser vista pelo médico. Não assinei os papéis de autorização e a tolerante Helena ofereceu-me tempo para pensar.
Fui invadida pela mesma sensação física que sentira no início do mês, com aquele telefonema prevendo o pior, aquela chamada que me tinha levado até ali. As pernas tremeram, as mãos suaram, o coração disparou e eu chorei como alguém chora quando não quer morrer. Chorei durante uma hora e meia. Sem parar.
Chorei porque não há plano que nos salve quando a única coisa que queremos é não morrer. Chorei por achar que ninguém devia estar ali, num quarto de hospital a contar os minutos para ouvir uma sentença final. Chorei porque ao meu lado não estavam as pessoas que amo e porque a vida é mesmo assim. Às vezes é mesmo assim, nem sempre conseguimos estar ao lado das pessoas que amamos.
Chorei com medo de ter tomado más decisões. Por todas as más decisões que tomei. E chorei de alívio. Alívio por sentir que sempre escolhi o amor. O amar. Sempre. Acima de qualquer outra coisa. Sempre me sacrifiquei por amor. Sempre estive do lado dele. Ele sempre foi o meu guia.
Chorei e tentei boicotar-me para não deixar que o médico me visse. Até planeei a fuga perfeita. Mas como sou corajosa, jamais me permitiria não ir em frente. Podia chorar o tempo que quisesse, mas jamais conseguir viver com a ideia de que não fiz o que devia ter feito. Não ali. Não agora. E por isso, quando a Helena entrou uma vez mais no quarto e me perguntou qual era a minha decisão eu respondi “a única possível, vamos em frente”.
Antes de me sedarem a enfermeira Joana disse: “Filipa, pensa num momento feliz”. Não tive tempo de escolher, são muitos.
Se querem descobrir a vossa essência, acordem de uma sedação mas não deixem que ninguém vos passe o telemóvel imediatamente para as mãos. Vão ligar, escrever ou fotografar. Vão tentar falar e dizer coisas com sentido, mas aquilo vai para só parecer estranho para quem está a ouvir. Ou então façam isso mesmo e divirtam-se tal como me diverti. Riam muito de vocês, coloquem-se nessa situação desconfortável e aproveitem-se.
Lembro-me de olhar para o quarto e para a Helena. Lembro-me de lhe pedir desculpa. Pelo drama e o choro. E, no seu jeito calmo, ela partilhar que é mais comum do que eu podia imaginar, que aquelas paredes contam muitas dores e medos, os seus ouvidos e olhos também. Ali somos frágeis e são estas Helenas que nos acolhem, que nos dão consolo.

Há uns tempos contei-vos que todos temos direito a um milagre de natal por ano. Este é o momento dele. Dezembro. O querido Dezembro. É aqui, neste mês, que acontece uma magia muito especial, em que tudo se resume a amor. Todos nós temos direito a um… há quem nem o note, por não acreditar, por distração, por estar demasiado ocupado. Há quem o espere ansiosamente e outros desesperadamente. E há quem os ofereça a quem precise, a quem já se esqueceu que tem direito a um. Confesso que este ano tinha-me dado jeito o meu, mas a vida sabe o que faz.
Expliquei ao médico que tinha medo de não conseguir escrever mais, que tinha medo de não voltar a escrever sobre amor e amar, sobre o Natal e os seus milagres. Sobre a força do acreditar. Sobre pessoas e inspiração. Contei-lhe também que a Inês me ofereceu, através de uma mensagem escrita com amor, o seu milagre de Natal. Que eu ficara muito emocionada mas achei um desperdício porque não me restaria muito tempo para o aproveitar. Disse também, ao médico que me ouvia atentamente enquanto me fazia festas na testa da forma mais paternal e carinhosa que já senti, que os mais cépticos davam o nome de “Euromilhões” ou “Jackpot” ao milagre de Natal, mas que em nada tinha a ver com dinheiro. Rimos os dois.
Dormi. Sem sonhar.
Esperei o médico e parte dos resultados da forma mais pacifica que me foi possível. Tal como me pediram. Na realidade sentia-me profundamente em paz. Pelo fim daquele choro todo, por ter conseguido e não me ter boicotado. Por ter sido corajosa e por ter aceitei que em algum momento nos vamos sentir sozinhos, mas seguiremos. Seguiremos sempre.
O médico entrou no quarto, sem luvas, sem máscara, simples. Colocou a mão no peito e disse-me:
”Filipa, agradece à Inês, ganhaste o teu milagre de Natal. Foi só um valente susto.”
Sim, os milagres de Natal existem. Estão vestidos de pessoas e lições. São médicos, amigos, enfermeiros, cabeleireiros e tantas outras coisas mais. São o amor que o outro nos coloca nas mãos, umas vezes a medo, outras cheios de coragem. É o respeito que temos pela vida, pela natureza, pelos animais. É tudo aquilo eu damos ao outro. É amar desenfreadamente. Sem egoísmo ou na tentativa diária de não o ser. Os milagres de Natal são pessoas. Aventuras dramáticas e divertidas.
O milagre de natal é amar a vida. A nossa vida e disso fazer o melhor que conseguirmos.
Feliz Natal *
Mas que grande susto me pregaste. Só fiquei aliviado mesmo no final do texto. És uma pessoa que adoro e por quem tenho tanto carinho. Depois de ler o texto só te quero dar um grande beijinho e dizer Feliz Natal, Feliz Natal, Feliz Natal, Feliz Natal, Feliz Natal este ano e nos próximos Natais com muita alegria e amor pois tanto mereces. Gosto muito de ti e quero que continues a partilhar o teu sorriso comigo.
Que palavras bonitas. Mesmo não sabendo quem é, agradeço com o coração e desejo um feliz, feliz, feliz natal. Todos os anos.