Antes de lançar o blog pensei que o Japão seria um dos meus primeiros textos. Não aconteceu. Durante longos minutos deparei-me com uma folha em branco. Não era o momento certo. Nunca o é quando do Japão se trata.
Esqueçamos a sua definição de país. Façamos o exercício de o perceber. É espiritualidade, é energia, é sonho tornado em terra, é sabor que aconchega quem o prova, é cachecol feito do tecido mais macio do mundo embrulhado ao nosso pescoço. O Japão é casa para o recém-chegado, e tortura para quem lhe diz adeus. Sim, amo-o de coração cheio. É esse amor que me entope as veias da escrita. É ele que me deixa sem léxico e incapaz de escolher as palavras certas. Mas tentar não custa.
Não estava à espera quando surgiu a oportunidade de ir viajar pelo Japão. Era plano a longo prazo, mas foi em curto que aconteceu. Em menos de um mês tratei de tudo. Férias no trabalho, comprar viagem sem olhar ao preço inflacionado, garantir o que me disseram mais difícil: alojamento, e esperar ansiosamente pelo dia da partida.
Há muita coisa para ver no Japão. Ver, sentir e ser. Uma viagem de 10 dias chega apenas para querer mais. Muito mais.
Momento mágico
Estávamos no terceiro dia de Quioto. Na noite anterior estes olhos trocaram olhar com uma gueixa depois de alguns passeios em busca das mulheres de cara branca. No momento mais improvável, quando a chuva decidiu começar a cair, ao virar a rua, ali estava ela. Caminhava na minha direcção, e só o barulho dos típicos okobos (sapatos de madeira) se ouvia. As indicações aos turistas estão por todo o lado: evitar contacto, não tirar fotografias, respeitar. Os meus pés não se mexeram mais, da minha boca não saiu qualquer som. Fiquei petrificada e talvez tenha sido isso que a fez olhar-me nos olhos, enquanto todos os outros tentavam uma memória fotográfica. Achei que tinha ganho a viagem naquele momento e voltei para o airbnb a gargalhar.
Na minha adolescência li – num livro emprestado – que todos os dias temos um momento mágico. Dura um segundo, ou um pouco mais para os sortudos. É um rasgo de perfeição que nos une a algo sublime. Algo que nunca conseguiremos explicar por desconhecimento e incapacidade humana. É a sintonia perfeita entre o corpo, a alma e o mundo. Somos um todo. Os atentos conseguem perceber esse momento e sentem a maior gratidão por estarem vivos, mas são mais as vezes que as lutas com o outro ou dentro de nós, nos distraem e nos deixam escapar o momento. A sua forma, escreveu o autor, pode ser de qualquer coisa. Um som, uma imagem, uma palavra, uma sensação. Qualquer coisa.
Nesse dia, concluíamos praticamente quase tudo do que queríamos ver na cidade. Durante os três dias tivemos tempo para tudo, contemplar a parte antiga, explorar a parte nova, caminhar durante horas e a dado momento demos por nós um bocadinho saturados de templos. Antes de partir para outra cidade, o Pedro insistiu que visitássemos “só mais um templo”, o Rokuon-Ji (鹿苑寺), na nossa língua, o Templo do Pavilhão Dourado.
Nos blogues de viagens e todos os guias que li, o pavilhão dourado era mencionado. No entanto, umas vezes mais efusivamente do que outras e, talvez por isso, misturando o meu cansaço por templos e a distância a que estávamos, hesitei na visita. Mas as viagens são para isso mesmo, certo? Ir, ver e viver. Em menos de cinco minutos estavamos decididos. Lá seguimos, em busca do ouro.
A viagem demorou mais do que estavamos à espera e ao chegar aos portões que guardam todo o parque o segurança fez questão de nos avisar: “acho que já não conseguem comprar bilhete”. Tínhamos percorrido a cidade toda, combatemos a nossa procrastinação, não podíamos não ter bilhete. Corremos como a Phoebe corre naquele dia em que vai ao parque com a Rachel. De forma desengonçada. Pernas para um lado, braços para o outro e, finalmente, quase sem ar erguemos vitoriosos os nossos bilhetes. Depois de rir muito, olhei para o Pedro e disse:
“Espero que valha a pena”
E valeu. Cada corrida, cada esforço e cada sensação de contra relógio que vivi não naquele momento, mas em toda a minha vida. Valeu tudo por aquela imagem que guardarei para sempre em mim. Os poucos raios solares do final de dia iluminavam o pavilhão tornando-o ainda mais extraordinário. O ruído muito provável nas ruas japonesas ficou completamente abafado. Foi como se entrássemos numa bolha de silêncio, de paz e de profunda sintonia com o nosso interior. Foi o momento mágico do dia vivido a dois. Dois que davam as mãos perante uma beleza quase sagrada. Uma beleza que nos deixou sem palavras. E a sensação não era só nossa. Aquele grupo de turistas que ali estava a partilhar o momento connosco transbordava contemplação. Senti-me emocionada. Percorri o parque entre suspiros e frases incompletas. “Fogo, ainda bem que…tão bonito…não tenho palavras”
Quis saber mais sobre a história daquele pagode . Soube-lhe destruições completas entre guerras e um fogo posto. Ardeu por completo, para se erguer ainda mais bonito. Ainda mais perfeito. Tal como nós, humanos, que nos sujamos nas quedas. Quedas que nos fazem rebolar na lama, gatinhar na terra. Lutas que depois de vencidas nos tornam mais belos, por sermos mais fortes e mais tolerantes.
Voltei a olhar os bonsais de muitos quinhentos anos. Quioto trouxe-me a percepção perfeita da sintonia com o mundo. Voltei a olhar o espaço no seu todo, olhei o grupo de chineses mais ao fundo que se mantinha em silêncio – e olhem que não é fácil -, olhei para o bilhete que ainda segurava numa mão gelada pelas baixas temperaturas e senti-me a pessoa mais feliz do mundo.
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