Dentro da bolha do anormal é preciso manter alguma normalidade. É assim que funcionamos. O mundo está a desabar lá fora, e nós, dentro do nosso mundo, vamos arrumando a casa, metendo as ideias em ordem para que, de alguma forma, consigamos manter a sanidade. E a coragem. E, talvez, sim, talvez, o acreditar.
Seria fácil perder o rumo e a orientação numa quarentena de 21 dias. Compreendo as pessoas que se deixam levar por uma inércia que nos cutuca na cabeça diariamente. Como quem nos pede para esquecer as horas e os dias. Como quem nos faz perder a noção do tempo.
É muito fácil entregar o corpo à frustração, resistência e negação, até porque, feitas as contas, só há dois caminhos possíveis para enfrentar o que quer que seja na vida, ou se aceita e se faz o melhor que se pode, com o melhor que se tem, ou se rejeita e se mergulha nessa luta desleal com todo o nosso ser.
Escolhi estar em paz com os meus 21 dias. Mas para isso, como para qualquer guerra, soube necessária uma estratégia. Sei os dias de cor, tento saber a quantas ando e não confundo refeições.
Mentalmente dividi o espaço em áreas de afazeres. Na secretária, que tirei junto do espelho para a colar à janela, sento-me para escrever, para rever, preparar aulas e criar.
No sofá, agora ocupado por livros, cachecóis e um presente, sento-me durante o pequeno-almoço. À tarde, nos dias em que posso, também lá dou um pulo, numa tentativa de ler um par de páginas de um novo livro que ainda não me apaixonou, mas que tem tudo para dar certo. Há amores assim, que se estranham na superfície e nos acorrentam quando neles mergulhamos.
O corredor transformou-se no meu estúdio de yoga. O tapete, dos primeiros objectos que os meus amigos me trouxeram, está lá desde que chegou. Pratico yoga todos os dias. É lá que ganho asas e voo para outros quartos, outros mundos e outros corações.
A casa de banho sofre com uma crise de personalidade. É casa de banho, lavandaria de roupa e louça e, quase como milagre, serve também para aquecer comida. Já lhe chamei de multifacetada e outras tantas vezes de esquizofrénica.
O armário do corredor que guarda o mini frigorífico, é o melhor balcão de cozinha que consegui arranjar. Está tudo muito organizado, mas nada faz sentido ali. E o guarda-roupa, bem, o guarda-roupa serve para isso mesmo, guardar a roupa.
Todos os dias, para espanto de muitos amigos, arranjo-me, maquilho-me, deixo o pijama na casa de banho e visto-me para ir para a secretária. Uso anéis, brincos e colares. Coloco perfume.
A capacidade humana sempre me surpreenderá. A força que carregamos em nós de nos reinventarmos, readaptarmos e até de nos transformarmos é inspiradora. Somos bichos extraordinários, de resistência divina e capacidade quase infindável. A querer, somos tanto. Construímos pontes, voamos ao céu e somos todos os dias colocados à prova. E em cada respirar, resistimos, recreamos e renascemos.
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