Desde sempre quis ser jornalista. Tive a grande sorte de nascer a saber o que queria ser. Bem convicta. Às vezes até em exagero. Não deixava de ter interesse noutras áreas. E se alguém me inspirasse, tal como alguns professores, médicos ou artistas o fizeram, questionava-me se estaria a tomar a melhor decisão profissional. Mais tarde, percebi o óbvio. Eram e são as pessoas que me inspiram, não as suas profissões.
Por motivos económicos e infelicidades familiares, foi-me colocado um obstáculo, daqueles muito demorados a ultrapassar, na entrada para a faculdade. Durante alguns anos estive privada desse privilégio. Sim, é um privilégio termos a possibilidade de estudar, mas é difícil para alguém com 18 anos perceber essa realidade, tendo em conta que estudar sempre foi a sua vida. (Talvez uns anos sabáticos, voluntariados, viagens para ganhar mundo, trabalhos em diferentes áreas – principalmente em contacto com o público, fosse uma feliz, felicíssima, aposta ganha. Mas isso já são outras conversas.)
Por estar sem estudar durante uma mão cheia de anos, questionei-me muitas vezes se conseguiria acompanhar uma licenciatura. Mas o desejo de ser jornalista sempre foi mais forte de qualquer outra coisa. Entrei em Coimbra, para felicidade da família. Eu queria estar mais longe. Perto da família sentia-me demasiado protegida. Não fui muito mais longe, escolhi Leiria. E foi Leiria, as suas pessoas, aquelas que encontrei naquele politécnico, que me deram mais do que algum dia elas possam imaginar.
No segundo dia de aulas, um dos meus professores, agora amigo próximo, o Paulo, dá um show de cultura geral a uma turma de mais de 30 alunos completamente a vibrar. O Paulo perguntava a cada um de nós o nome, idade e local de residência. Depois fazia um apontamento de uma característica do local. Chegou a minha vez, e eu temi dizer a minha idade, afinal de contas era mais velha do que aquela malta entre 5 a 7 anos. Sentia-me constrangida. Sem fundamento. Mas esse sentimento consumia-me.
Não sei se o Paulo ouviu a minha idade, talvez não. Talvez ele nem se lembre disto, mas depois de terminar aquele banho de particularidades regionais, disse-nos que aos 16 anos já devíamos estar todos a trabalhar na área do jornalismo, a colaborar com os jornais locais das nossas terras, ou em busca de reportagens. Eu, cheia de confiança como sempre, refutei. Lancei um “nunca é tarde”, que teve imediatamente resposta. “Com mais de 20 anos já vens tarde, dificilmente serás jornalista”.
Calei-me. Fui para casa desfeita. Estar ali iria implicar muito sacrifício. Financeiro. Ter conseguido chegar já era das maiores vitórias da minha curta vida, mas os três anos seguintes não seriam fáceis e a incerteza se teria condições para fazer o curso ocupavam largo espaço na minha cabeça. Mas isso, ele não sabia. Lembro-me de pegar no meu telemóvel, ligar à minha mãe e dizer “acho que isto não foi muito boa ideia”. Do outro lado da linha, um longo silêncio, interrompido com um “ele não sabe o que diz”. Rimos as duas.
Mudar o mundo
Mas porquê o jornalismo? Porque sempre quis mudar o mundo. Sinto-o como a obrigação mais prazerosa de sempre. Por acreditar, na altura, que os jornalistas devem trabalhar para mudar o mundo. Por acreditar, agora, que todos nós, seja em que profissão for, seja em que momento da nossa vida, conseguimos mudar o mundo. Melhorá-lo. Transformá-lo. No dia-a-dia do outro, no cuidado, no exemplo, na palavra amiga, ou na descoberta da cura do cancro! Cada um tem o seu papel, a sua função. E começamos essa mudança com uma mudança interior, na tentativa de sermos melhores e fazermos a coisa certa todos os dias. Implicando reconhecermo-nos como seres imperfeitos e perdoar os erros. Os nossos e os dos outros.
Durante a minha licenciatura e já a trabalhar como jornalista vi muitos colegas desanimados com o jornalismo. Talvez seja o mau tratamento que Portugal dá aos seus jornalistas, talvez seja a influência de um mundo cheio de más notícias. Talvez sejam outras tantas coisas. Muitos dos meus colegas perderam o encanto pela profissão, o cuidado e o sentido de responsabilidade social. Tantos deles olhavam o jornalismo como uma nuvem bem carregada. Sem solução à vista. Eu insista no lado romântico. Eles rotulavam-me de ingénua e miúda. Vivíamos uma relação divertida.
A diferença de Macau
Foi pela voz do Paulo que soube que vinha para Macau. Na verdade, foi ele que mudou a minha vida. E foi cá que vi uma equipa que acreditava que o jornalista pode e deve mudar o mundo. A minha primeira reportagem em Macau teve o título, inspirado por John Steinbeck, de “Ratos & Homens” (podem ler aqui).
Em busca de uma reportagem completamente diferente, eu e a minha colega chinesa, fomos presenteadas com aquele que seria um dos trabalhos que melhor nos soube. Dentro de um antigo armazém, uma espécie de cave alojava um número improvável de famílias. As condições eram miseráveis. Uma única casa de banho que se resumia a um minúsculo compartimento com um balde e uma torneira. O cheiro causava náuseas e dificultava a concentração. Não queríamos acreditar que alguém vivia naquelas condições. Não num local com tanto dinheiro, como Macau se orgulha de ser.

Grande parte das famílias estava em situação ilegal e, por essa razão, olhavam-nos com ar de poucos amigos. Foi nesse desconforto que encontramos o Ng. Eles não nos falou. Muito menos nos olhou. Foi o irmão que relatou a história. Que apontou o dedo à área cinzenta da lei, à falta de iniciativa do governo. Ng, sofre de deficiência, não conseguia proferir mais do que sons completamente imperceptíveis. O irmão entendia-o. Visitava-o todos os dias e justificava-se na impossibilidade de ter o irmão em sua casa. A olhar para as outras casas não tivemos duvidas que dentro do miserável, aquela era a melhor.
Escrevi com fervor. Escrevi, apaguei, quis ser imparcial, não consegui. E depois de publicada a história, o telefone começou a tocar. Do outro lado, alguém em nome da entidade social competente a agradecer o trabalho de campo. Tive uma mistura de sentimentos contraditórios e não soube o que aquele telefonema representava. Mas, mais tarde, percebi. Tudo. Representava tudo.

Nunca é tarde
Um ano depois, sentia-me a repetir agenda. Sempre tive medo das repetições cíclicas. Interpreto-as como chamadas de atenção de que não estou a evoluir, de que me mantenho no mesmo lugar. E não há nada pior do que estagnar.
Em reflexão aos trabalhos que durante o ano tinha escrito, lembrei o Ng. No dia seguinte sugeri em reunião de edição, que o visitássemos. Lá fomos nós. As instalações estavam vazias. A Flora, companheira de reportagem, conseguiu o número do irmão de Ng que em êxtase nos diz que “há meses que vos procuro”.
Marcámos encontro para o dia seguinte ao final da tarde. O ponto de encontro era um lar privado no outro lado de Macau. Ao chegar percorremos o corredor até à área comum e ao fundo vejo dois homens. Um era o irmão de Ng e não reconheci o outro. Mais próximas, o segundo homem olha directamente para nós e abre um sorriso rasgado. Era Ng. Irreconhecível. É óbvio que este minúsculo coração não aguentou e durante horas escorreram-me as lágrimas pela cara, tremiam-me as pernas, e as mãos e os lábios.
O governo tinha tratado das suas pessoas. E nesse momento, aquele telefonema fez sentido. Ng estava a ser acompanhado por uma fisioterapeuta, por uma terapeuta da fala e quis, exibindo-se, mostrar-nos que já conseguia andar com o andarilho. Estava louca. Não cabia em mim. Mal segurava a felicidade que parecia querer rebentar com o meu peito. Quis começar a escrever aquela reportagem, aquela reportagem tão feliz, naquele momento. Se Macau mereceu saber que algo não estava bem, então também precisava de saber que, quando em conjunto, o sistema funciona. A sociedade precisava de acreditar e de saber que há finais felizes. Muito felizes.

Ao sairmos, de alma cheia, quis abraçar a Flora. Muito. Disse-lhe que aquela era a razão para sermos jornalistas, que podíamos mudar o mundo assim, juntas, uma portuguesa e uma chinesa, que não interessavam as nossas diferenças culturas, as nossas más interpretações e barreiras linguísticas quando a única intenção é melhorar a vida do outro.
Peguei o telemóvel e liguei ao Paulo, falei-lhe de ser jornalista e de como acreditava que podíamos mudar o mundo. Ele riu-se e sabia-me com razão. Mas ele sabia mais do que isso. Ele sabia que para ser jornalista é preciso paixão, assim como para mudar o mundo. Paixão de fazer, paixão nos ideais, na vontade de querer. Mesmo quando o caminho se mostra com muito nevoeiro. Sabia que temos de ir, mesmo com medo, agarrados à certeza de que é a coisa certa. O Paulo sempre soube que quem luta com paixão vence. Quem faz por amor, ganha. Eu…eu aprendi isso mais tarde. Eu vou aprendendo que somos iguais, na fragilidade, nas inseguranças e no medo. Mas que somos muitos mais do que esses entraves todos. Somos, quando juntos, uma força invencível. Somos, quando por amor, imparáveis. Somos, quando amamos, inspiradores.

(Nota: O presente texto faz parte da edição “Macau Inspira” que aconteceu no passado sábado, 19 de Outubro, no Instituto Politécnico de Macau, organizado por Leiria Inspira. Um agradecimento enorme à cara desta organização, Filipa Fróis, uma jovem que olha o mundo com preocupação e carinho, que fez com que o FAR saísse à rua pela primeira vez. Leiria Inspira quer inspirar o mundo e as suas pessoas a fazer acontecer, podem seguir o projecto aqui.)
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