O meu irmão já sabe, nem tem como enganar, os melhores presentes para a irmãzinha são livros, cadernos e seus derivados. Tenho-lhe estado atenta. Ele não quer ser só aquela pessoa que oferece os “best sellers” do momento, ele quer dar um toque especial. Por esta razão, nos últimos anos a minha estante tem ficado mais rica em livros que estimulam a criatividade e a escrita. Livros que promovem a reflexão. Ele, o meu irmão, não sabe, mas muito me tem feito questionar, descobrir e, lá está, reflectir.
Esta manhã, com algum tempo livre no bolso, resolvi dedicar-me ao mais recente presente. Desafiei-me a escrever sobre o tema que o livro decidisse. Abri em jeito aleatório e lá estava a recomendação de reflexão: o momento de viragem da minha vida. Não era de uma mudança. Era “A Viragem”. Uma viragem profunda, não daqueles abanões que nos fazem questionar a existência, mas que em menos de nada estamos de volta à rotina. Daqueles acontecimentos que nos deixam a olhar para o céu a perguntar “que caraças aconteceu aqui?”. Daquelas viragens que mudam tudo, como se fizéssemos um reset a tudo o que fomos e recomeçássemos uma nova vida.
Encostei-me para trás, bem confortável, e deixei-me vaguear nos meus próprios sentidos. Deixei que corpo e alma me levassem até ao momento de viragem e cheguei ali: estava dentro do meu carro, com a Joana ao meu lado, depois do nosso habitual almoço, e o meu telemóvel tocou. Era o Paulo, e com ele trazia a pergunta: Queres ir para Macau?

Ser emigrante
Antes de aprofundar, devo confessar que emigrar sempre foi uma coisa que procurei. Desde muito nova. Sempre quis aproveitar todas as plataformas de intercâmbio que as escolas podiam oferecer e assim que terminei a licenciatura mergulhei na procura por oportunidades além-fronteiras. Mudar de cidade dentro de Portugal não me chegava, queria mais qualquer coisa. As viagens de lazer não me chegavam. Queria ir mais longe. Por mais tempo.
Tudo aconteceu muito rápido. O convite surgiu e uma semana e meia depois lá iniciava esta relação profunda que mantenho durante os últimos seis anos com a Emirates. Macau mudou a minha vida, não de uma forma espontânea e imediata. Mas sim de forma lenta e demorada. Bem, não foi Macau, foi a emigração.
A emigração foi, até ao momento, a viragem da minha história. Arrancou-me tudo o que plantara até ao momento, apagou toda a minha história, deitou o meu livro de rascunhos fora, para não haver marcas de borracha tingida, e ofereceu-me uma pilha de folhas em branco, com cheiro a novo, com a directiva: agora escreve.

Novos mundos
A emigração apresenta-se como um dos processos mais transformadores. Muda-nos a perspectiva e os ângulos, altera-nos as definições, os conceitos e rouba-nos as certezas. Acrescenta-nos, em todos os aspectos. Em todas as áreas da nossa vida. Faz-nos crescer, muito. Tanto. À bruta ou como brisa leve. E tem a particularidade de ser vivida de diferentes formas. Embora com muitos pontos em comum, cada emigrante vive o seu processo de forma muito pessoal, muito íntima. É sem dúvida um percurso de descoberta. Descoberta de nós. Das nossas capacidades, das nossas fortalezas, das fraquezas e tantas fragilidades. Da resistência.
Sair para ser noutro lugar coloca-nos expostos ao mundo. Como se nus estivéssemos no meio de multidão vestida da cabeça aos pés. Seja na Europa ou na Ásia, qualquer emigrante entra numa cultura que não é a sua. Não é mais fácil ou difícil aqui ou acolá. Mesmo que a Europa, ao longe, nos pareça muito igual, as suas raízes são diferentes. Diferentes no mais supérfluo e no mais profundo. Desde a gastronomia, o clima e o idioma, à forma como lidamos com o outro, como o interpretamos segundo os nossos valores, como nos expressamos sobre aquilo que achamos correcto.
Este é o grande ensinamento da emigração, as nossas maiores certezas são as maiores incertezas do outro. Diz-nos, esta emigração, que não há errado. Há pontos de vistas, experiências, caminhos e encruzilhadas, há educações, posturas e compreensões tão diferentes como variadas. São mil vezes mil, mil milhões de vezes. Há mais. Há humanos. Muitos, tantos, um oceano deles. Humanos que só por si representam tantas outras coisas mais.
Assim, este iceberg que se mostra um bloco de gelo de tamanho médio à superfície esconde o maior corpo de gelo debaixo das águas. E é aí que percebemos que afinal a maior mudança não foi ter mudado de país, foi o que esse país nos mudou, como ele nos transformou, como ele aprimorou a nossa capacidade de olhar o outro, primando pela tolerância, como ele nos abriu caminho para uma reflexão profunda sobre quem somos, o que queremos ser e para onde queremos ir. Foi perceber que afinal a emigração não nos afasta. Ela aproxima-nos. Dos novos e dos antigos amores. Porque o amor, diz a emigração, não tem fronteiras, não precisa delas. Não é físico. Nem palpável. Não precisa de estar para se fazer sentir. Porque quem ama, ama, até de olhos fechados.

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